Pérolas aos Porcos
Um ensaio sobre a dieta espanhola e sua resistência contra tudo o que é dito ser saudável hoje em dia.
por Hermés Galvão
Em sua geografia e filosofia, a península ibérica é um trampolim da anarquia boêmia e gastronômica — em portunhol, claro: "jogación”.
Enquanto o meio mundo discute os benefícios do kéfir e as maldições da carne vermelha, do cigarro, e do álcool, a Espanha mergulha de cabeça, corpo e membros nos prazeres do proibido e do imoral que engorda. Para o espanhol, tudo que está na lista negra do novo bem-estar universal é atestado de felicidade; e a turma não abre mão de nada, assina embaixo em letras garrafais: “jodido, pero contento”.
De Madrid ao pueblo mais medieval da Galícia, onde Judas (e o Paulo Coelho) perdeu as botas, fuma-se, bebe-se e come-se sem culpa, sem erro, sem medo, sem peso na consciência. Sobre todas as mesas, uma tapa, um pincho com morcilla sangrando pelas tabelas − de fazer vegano ficar verde de nojo −, um cinzeiro lotado, tabacos sendo enrolados, isqueiros passando de mão em mão...
De fato, a Espanha é o pesadelo de qualquer Ministério da Saúde, um tiro no pé da campanha pró-merenda healthy de Michele Obama, um soco no estômago do Jamie Oliver. E desafia médicos, cientistas e videntes porque, pelo ritmo da noite e pelo cardápio do dia, o país já era para ter sido internado em estado grave!
E as lojinhas de orgânicos que se multiplicam em Barcelona (onde um sensacional restaurante em Gracia, com menu enxuto apenas no preço, avisa logo na porta: “hipsters e vegetarianos, vocês não são bem-vindos”) parecem atender apenas à demanda estrangeira. Biô em BCN, sim, mas a clientela tem dois tons de loiro acima da média − são escandinavos que não demoram muito a se entregar aos prazeres da carne (de porco) e a cair de boca no chorizo – talvez a digestão deles faça a gente entender o real significado da expressão “existe algo podre no reino da Dinamarca”... vai saber, ou melhor, não.
Fiquemos com a deliciosa ideia de que espanhóis seguem firmes e fortes em sua dieta venenosa. E, pelo visto, não vão largar o osso tão cedo. Agora, corta!
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a expectativa de vida do povo espanhol é a terceira maior do mundo, de 82,8 anos – atrás apenas do Japão, com 83,7, e da Suíça, com 83,4 (os seis décimos para os 84 morreram de tédio em algum cantão entre Appenzel e uma outra que nos dá a sensação de estarmos presos para sempre num quebra-cabeça de 500 peças).
Então, atenção para o refrão − geração granola; facção hipster; alô, Brooklyn! Hei, Copenhagen! Acordem, garotas de Berlim! Não é o chorizo, nem o jamón, o cigarro, a gin tônica, o tinto de verão, o vermuth, a morcilla, a botifarra ou a chistorra que encurtam nossos dias ou atrasam as ideias de uma dieta perfeita global.
Talvez o segredo da longevidade deles esteja no fato de extravasar sobre tudo e qualquer coisa e a qualquer momento, para que a vida não seja uma subsistência da existência. Fala-se alto, lava-se roupa suja na rua, briga-se, discute-se, RESOLVE-SE.
Depois de um dia inteiro esbravejando e soltando os cachorros, todos parecem voltar para casa sem desaforo, leves e serenos, despreocupados, fumando um cigarro atrás do outro enquanto secam o último bar do Born que só fechou porque as moradoras do prédio acima chamaram a polícia– senhoras de seus mais de 82.8 anos que dia sim, outro também, vão ao Mercado Santa Catarina comprar aquela linda peça de jamón ibérico que acabou de chegar de Salamanca.