O NOVO VELHO MUNDO
Como as vinícolas de Bordeaux conservam o passado com a precisão de agora
por camila wanderley imagens guilherme wanderley
A manhã nasce fria sobre as fileiras de videiras. A névoa segura o tempo, a terra respira devagar, e a gente aprende a ler o vinhedo com dois alfabetos: o dos sentidos e o dos dados. Lá no fundo, dá para ouvir o cascalho estalar sob as botas e, no alto, um drone risca o céu como gaivota curiosa. Bordeaux é esse intervalo: tradição que não tem pressa e tecnologia que não quer aparecer — só ajudar.
No correr do dia, a colheita continua ciosa, cacho por cacho, como se cada planta fosse uma história particular. Narrativa centenária, que já cruzou gerações e oceanos, atraindo todo tipo de gente para celebrar o terroir de Bordeaux. O que mudou é a nitidez com que se escuta essa história. Sensores, mapas de vigor e uma logística mais esperta permitem colher no momento certo e levar a fruta inteira para a adega. Não é para “modernizar o gosto” — é para preservar o sotaque, num mundo onde o tradicional aos poucos perde espaço para a pressa, para a padronização e a degradação de personalidade.
TÉCNICA QUE AFINA OS SENTIDOS
Dentro da cave, o silêncio tem outra temperatura. O vinho desce por gravidade, sem esforço, como quem vai de mãos dadas até a próxima etapa. No Château Branaire-Ducru, 4º Grand Cru Classé de Saint-Julien, a nova sala de cubas parece uma nave: são 75 tanques, 65 deles suspensos, concebidos para que o percurso da uva seja 100% por gravidade: entra no alto, fermenta na medida da parcela e segue adiante sem bombas. Quanto menos sacolejo, mais inteiros ficam os aromas, a fruta e a textura; o resultado costuma ser um tinto de fruta límpida, taninos mais finos e sensação de delicadeza. É engenharia a serviço da tradição.
A poucos quilômetros, o Château Lynch-Bages abre uma janela para dentro: a adega nova, de linhas claras, foi desenhada para gravidade e vinificação por parcela — cada talhão vira um “minivinho” na sua própria cuba; no fim, o enólogo prova tudo e mistura o que faz mais sentido. Isso dá controle e nuance: você espera vinhos clássicos de Pauillac, com Cabernet Sauvignon dominante, só que bem mais nítidos. O projeto, assinado pela PEI Architects, aparece entre as entradas do Landezine International Landscape Award de 2025 — arquitetura que aproxima o visitante do processo, com esculturas poderosas decorando os espaços — mas sem roubar a cena do vinho.
Nem tudo, porém, está nos tanques de aço inox e nos novos softwares. Às vezes, o que decide é a luz de uma vela. A velha trasfega — método antigo em que o vinho passa de barrica em barrica para se separar das borras — continua existindo: hoje com mais controle, mais higiene, mas no mesmo ritual. O corte, aquela parte do processo em que o enólogo monta o blend do ano, segue guiado pelo paladar. A técnica não substitui os sentidos; os afina.
No solo de calcário de Saint-Émilion, o chão também trabalha. No Château Franc Mayne, antigas pedreiras viraram caves. Aqui, o vinho amadurece longe do mundo, entre frios corredores de pedra (até sob o sol de verão). O calcário funciona como uma “bateria” natural: drena quando chove, devolve água devagar ao ambiente quando falta, ajudando a manter frescor — por isso, tantos vinhos de Saint-Émilion exibem aquela energia de boca, quase salgada.
Fizemos um teste: cheire o vinho na taça, esfregue sua mão no minério sobre o qual cresceu aquele vinhedo (no nosso caso, calcário), cheire sua mão, cheire o vinho novamente. Ao provar, você consegue sentir notas daquele minério no vinho.
Parte das safras no Franc Mayne descansa em ânforas, recipientes de argila que não perfumam como o carvalho e deixam o vinho respirar de leve; a textura ganha polidez sem perder a pureza da fruta. Desde 2018, com a chegada da diretora técnica Sophie Mage, a casa acelerou a vinificação por (e até intra) parcela, reestruturou o vinhedo e iniciou a virada para o orgânico (certificação a partir de 2022) — uma mudança de método que se sente no copo: mais precisão, mais frescor, mesmo terroir.
“PODRIDÃO NOBRE”
Por último, vamos a Sauternes. Aqui, a modernidade se ajoelha diante de um milagre discreto: o fungo botrytis cinerea, que perfura de leve a casca da uva, deixa a água ir embora e concentra sabor e doçura — efeito conhecido como “podridão nobre”. Essa coreografia nasce do encontro do rio Ciron (frio) com o rio Garonne (morno), que de manhã trazem névoa e, à tarde, abrem céu — o suficiente para o fungo trabalhar sem virar podridão comum. A colheita acontece em múltiplas passagens, grão por grão; e hoje previsões climáticas e uma triagem mais criteriosa só servem para proteger o ritual.
No Château Lafaurie-Peyraguey, essa tra dição ganhou uma sala de jantar contemporânea: o Restaurant LALIQUE soma duas estrelas Michelin e provou que os vinhos doces de Sauternes cabem em outros horários da mesa, ao lado de pratos com textura, sal e especiarias. E, na vinha e na adega, o método segue fiel à tradição: Sémillon dominante (com toques de Sauvignon Blanc e Muscadelle), colheita manual em várias rodadas, rendimento bem baixo (meia taça de vinho por videira) e fermentação/ amadurecimento em carvalho francês — doçura equilibrada por acidez e complexidade de aromas. Resultado: um doce que conversa com a cozinha de hoje sem perder o respeito pelo que a névoa começou no vinhedo.
No fim do dia, voltamos à ideia simples que Bordeaux está construindo: inovação não é efeito especial; é nitidez. Gravidade no lugar de bombas, salas de cubas desenhadas no tamanho das parcelas, caves de pedra que respiram, ânforas que acariciam a textura, colheitas em passagens guiadas pelo clima, hospitalidade que reencena o vinho à mesa — tudo para que, na taça, apareçam com mais clareza a fruta, o frescor, o tanino macio e a assinatura do lugar.
E quando a gente serve as taças — um tinto de Saint-Julien com passo leve, um Pauillac de taninos firmes, um Saint-Émilion de energia calcária, um Sauternes que remete a damasco e casca de laranja — percebe que a tecnologia fez o que precisava fazer: sumiu. Deixou o palco para o terroir. O novo não corrige o velho; protege.
Bordeaux, afinal, não virou laboratório nem museu. Preferiu um caminho do meio, no qual cavalos e sensores, velas e aço inox, névoa e satélites, trabalham juntos por um mesmo objetivo: que cada safra siga contando a história de sempre — só que com a precisão de agora.





