Como nascem as receitas
Cinco chefs de Belo Horizonte compartilham os bastidores de seus pratos favoritos — e mostram que criar uma receita é, antes de tudo, um ato de memória, técnica e intenção
Antes de ser receita, um prato é vontade. Pode surgir de uma lembrança, de uma inquietação, de um erro bem-vindo ou de uma busca quase obsessiva por textura, temperatura e sabor. Mas quase nunca nasce pronto. Ele se constrói aos poucos, entre testes, intuições, referências, erros e acertos.
Convidamos cinco chefs de Belo Horizonte — Renata Rocha (Albertina), Agnes Farkasvolgyi (A Casa da Agnes), Fabi Martins (Polvilha), Ana Clara Valadares (TOM) e Ju Duarte (Cozinha Santo Antônio) — a responder uma pergunta simples e complexa ao mesmo tempo: qual é, hoje, sua receita favorita e como ela nasceu? As respostas revelam processos muito distintos, mas atravessados pela mesma coisa: intenção.
Um pé com história: Ana Clara Valadares (TOM)
No recém-inaugurado restaurante TOM, a receita favorita da chef Ana Clara Valadares é, de longe, o prato mais ousado: pé de porco. Ele chega à mesa com tudo — inclusive as unhas — e já virou assunto constante entre os clientes. Mas não se trata de provocação gratuita: o prato parte do zampone italiano (embutido feito na pele do pé e da panturrilha do porco) e ganha tradução própria com ingredientes brasileiros.
“Veio da vontade de provocar uma reflexão sobre o que é nobre e o que é resto”, diz Ana Clara. “No Brasil, o pé costuma ser deixado de lado. Mas ele tem potência, sabor, história.” Foram várias versões — com arroz, sozinho, em outros formatos — até chegar ao equilíbrio ideal: o pé preguento e untuoso com purê de feijão branco, torresminho de orelha e gremolata de coentro e pimenta de cheiro. “O casamento da untuosidade, crocância e acidez juntou contrastes e texturas.”
Para ela, uma boa receita precisa ter coragem. “Coragem de dizer o que veio dizer, com técnica, com estudo, com memória. E com intenção.”
O pão essencial de Renata Rocha (Albertina)
A receita favorita de Renata Rocha é o pão mais básico — e talvez o mais difícil: o sourdough clássico. “Esse é o pão original, essencial, que me fez ter vontade de ser padeira.” Inspirado na receita da Tartine Bakery, em San Francisco, ele exigiu anos de pesquisa, testes, cursos, adaptação de equipamentos e farinhas até chegar ao ponto exato. “Eu sabia exatamente qual seria o cheiro, a textura, o sabor e o formato. Só não sabia como chegar lá.”
Foi só depois de estudar na própria cidade do Tartine e experimentar o pão original que Renata entendeu o que precisava ajustar. Já no Brasil, comprou um forno belga Rofco pelo eBay, fez um blend de cinco farinhas, observou variações de temperatura e umidade, ajustou tudo à exaustão. Hoje, o pão é executado com equipamentos profissionais e equipe treinada — mas segue sendo vigiado de perto. “A ideia original não pode se perder no processo.”
Com farinha, água e sal, ela cria um produto que emociona. Como o caso de seu Antônio, um cliente de 95 anos que mora em Maceió e recebe dois pães pelo correio, toda quarta-feira. “Ao comer, ele se lembrou da infância na Itália, durante a guerra. Ganhava um pedaço de pão por pequenos serviços e sentiu no nosso pão aquele mesmo sabor.”
Um arroz que conta uma vida: Agnes Farkasvolgyi (A Casa da Agnes)
No bistrô que leva seu nome, Agnes Farkasvolgyi diz que o cardápio é quase autobiográfico. E entre as receitas favoritas está o arroz de pato, “certamente uma das mais queridas”. Pato está entre suas carnes favoritas, e a receita nasceu da vontade de criar um arroz úmido, com leve dulçor ao fundo, e notas defumadas do paio.
Inspirado na tradição portuguesa, o prato passa por três etapas: o pato é marinado e assado com um toque de mel e cebolas cortadas ao meio; depois, a carcaça dá origem a um caldo rico, com vinho e paio; por fim, o arroz é cozido nesse caldo. “Testei essa receita algumas vezes nas aulas de culinária antes de chegar à versão final.” Hoje, algumas variações incluem tomate cassé e um toque de óleo de trufas.
“Ela conversa com todo o cardápio porque ele conta a minha história. É um compilado do meu aprendizado e da minha evolução na cozinha.” O prato virou assinatura: está no bistrô, nas festas que Agnes prepara e, principalmente, na memória dos que provam.
Memória mineira com recheio doce: Fabi Martins (Polvilha)
Na Polvilha, Fabi Martins vive o desafio constante de criar sabores para o bolo de pão de queijo — invenção que nasceu da fusão entre as receitas das avós e uma provocação vista na televisão. “Em casa de mineiro você sempre é recebido com o combo: bolo, pão de queijo e cafezinho. Então por que não juntar o bolo e o pão de queijo numa receita só?”
Entre os sabores preferidos do momento, ela cita o recheado com doce de leite e o com doce de jabuticaba cristalizado. “Demorei muito até achar um doce de jabuticaba que combinasse bem com a massa. Esse vem de Goiás.” O processo é cuidadoso: as proporções de polvilho e queijo são ajustadas com precisão, o tempo de cura do queijo é controlado em casa. “Quando levei para o meu analista e ele comeu o bolo todo de uma vez, entendi que tinha chegado na receita ideal.”
Para ela, uma receita boa precisa de tempo e frescor. Mas também de afeto. “Toda receita é um caminho para o coração. Eduardo Galeano escreveu: ‘Recordar: do latim re-cordis, voltar a passar pelo coração’. Uma boa receita ativa os cinco sentidos, que são nossas verdadeiras máquinas do tempo.”
Um prato que emociona: Ju Duarte (Cozinha Santo Antônio)
A chef Ju Duarte, da Cozinha Santo Antônio, escolheu como favorita a receita Maria da Cruz — e não por acaso. O prato leva peito de boi curraleiro-pé-duro, mandioca, requeijão moreno, manteiga de garrafa, pequi e pimenta com marí. Mas seu peso está, sobretudo, na história que carrega: é uma homenagem à figura histórica de Maria da Cruz, comerciante rebelde que liderou motins no sertão mineiro contra impostos da coroa portuguesa no século XVIII.
“Queria desafiar a ideia de que mineiro só come porco e frango”, conta Ju. “No norte de Minas, come-se carne de boi e peixe também. Esse prato fala sobre território, tradição e resistência.” A reação do público comprova: já teve cliente que chorou ao comê-lo, lembrando da infância com o avô, às margens do São Francisco. “Ele chorou copiosamente. Depois me disseram que o prato o transportou no tempo.”
Para Ju, uma receita boa só se completa no outro. “O trabalho do chef tem que desaparecer. A receita precisa ressoar em quem come, despertar memória, história, emoção.”
Serviço
TOM
Horários: quarta, quinta e sexta das 18h30 à 0h; sábado das 12h às 0h; domingo das 12h às 17h
Endereço: Av. Amazonas, 1049 – loja 70 – Centro, Belo Horizonte
Instagram: @tomcozinha
Albertina
Rua Fernandes Tourinho, 1010 – Belo Horizonte
Horário: quarta a sexta, das 10h às 18h | sábado, das 9h30 às 14h
Encomendas pelo site
Instagram: @albertina_paes
A Casa da Agnes
Rua Paulo Afonso, 833 – Santo Antônio, Belo Horizonte
Almoços: terça a sexta-feira, de 12h às 15h | sábado, de 12h às 16h
Eventos fechados para até 60 pessoas
Informações e delivery: (31) 98738-7066
@acasadaagnes
Polvilha
@polvilha.bh
Encomendas: 31 99516-1597
Site
Cozinha Santo Antônio
Rua São Domingos do Prata, 453 – Santo Antônio, Belo Horizonte
Funcionamento:
Terça a sexta, das 12h às 15h
Sábados, domingos e feriados, das 12h30 às 17h
Quintas e sextas, das 19h às 23h
@cozinhasantoantonio